Era ídolo, queria ser gente

Aletheia Vieira
4 min readNov 25, 2020

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O fotógrafo Steve Powell registrou um momento de resistência latino-americana durante um Argentina e Bélgica na Copa de 1982 (Fonte: Trivela).

Em 2004, o Maradona caiu doente por causa de uma overdose de cocaína. A situação era grave, os argentinos fizeram vigília na porta do hospital. Foram dias de angústia até ele melhorar. A expectativa de perdê-lo poderia ter me aliviado, afinal, fui criada num lar onde a Argentina era rival no futebol e Dom Diego, odiado.

Mas, não. A possibilidade da morte de Maradona me apavorou. Algo ali me prendia, meu mundo sem Maradona não faria sentido. Parte da minha história de vida, de vivência latino-americana está diretamente atrelada a ele. Eu não entendia isso direito. Com o passar do tempo pude perceber o erro em dimensionar demais essa rivalidade.

Maradona será para sempre uma das marcas da América Latina assim como Simon Bolívar, Che Guevara, Fidel Castro, Mercedes Sosa. Mas o projeto de colonização foi tão efetivo em nos desvincular da latinidade que insistimos em buscar muito mais as diferenças com os países vizinhos do que as semelhanças. A rivalidade Argentina x Brasil no futebol é parte disso, principalmente em função de Maradona ter aparecido e se destacado numa época em que a Seleção Brasileira amargava derrotas em Copas do Mundo, foram 24 anos de jejum de 1970 até 94.

Foi por isso que minha mãe odiou o Maradona por muitos anos, o achava boçal, arrogante, detestava aquele ar de superioridade em campo. Ela se sentia ultrajada quando o via vestindo a camisa da Seleção Brasileira. Eu também me incomodava. Só depois fui entender os motivos do temperamento dele. Era enfrentamento, inclusive político, por meio do futebol, contra nações que nos vilipendiaram, roubaram nossas riquezas para aumentar seus lucros e luxos. Naquele momento, anos 80, quando Diego estava no auge, algumas dessas nações continuavam sugando o pouco que tínhamos em nome do pagamento de uma dívida externa.

Tão individualistas que somos, tão despolitizados no esporte em outras áreas, não conseguíamos observar o potencial revolucionário de Maradona, sua consciência latino-americana, sua busca por um mundo mais justo, na forma como se apresentava, como impunha seu talento nos gramados. Maradona corria com a cabeça erguida, dando rápidos olhares na bola. Era o seu destino, chutar e correr, olhar para frente, arriscar, nos ensinava a ser assim na vida, a virar a lógica de cima para baixo.

Maradona era apaixonado por Cuba e tinha Fidel Castro como um pai. Ele fez tratamentos de saúde na Ilha.

Mas não percebíamos, a maior TV brasileira dizia, o locutor de grande audiência, que ganhar da Argentina era muito melhor. Nunca interessou a essa emissora a unidade latino-americana. Aliás, o apoio dado à Ditadura Militar em 64, a forma como se refere a alguns países do continente, só demonstra isso. Jogar contra a Argentina deveria ser algo natural, rivalidade saudável, porém, não foi o que nos disseram.

Além disso, a maioria dos jogadores brasileiros sempre foi muito apática em relação à identificação latino-americana, à luta de classes, à desigualdade social e ao racismo. Muitos deles vítimas desses processos, logo que ganhavam dinheiro, se alienavam ainda mais, e escondiam também seus reais temperamentos e fragilidades. Muita gente não gostava do Romário por isso: ele dizia o que pensava e muitas vezes era visto como arrogante, em outras situações caía no choro. É claro que ser autêntico não significa ser um mau-caráter, nem estou tratando disso. Que fique bem claro.

Em 2014, eu percebi, durante a Copa do Mundo no Brasil, o quanto esse projeto de rivalidade tinha ido às últimas consequências, quando após o 7x1 da Alemanha sobre nós, eu torci para os algozes na final contra os hermanos. A cobertura da imprensa esportiva brasileira, em geral, influenciou essa ideia. Era inconcebível ter perdido daquela forma em casa (o Maracanazo virou apenas um sonho ruim que tinha passado) e ainda ver a Argentina ser Campeã Mundial.

Mas isso não se faz com irmão. Principalmente com o irmão que derramou tanto sangue quanto você para ter alguma dignidade.

Entendo agora Maradona. Não queria ser ídolo, queria ser gente, queria ser povo, era do povo. Gente erra, gente falha, gente grita, gente luta.

Crédito: EFE

Descanse em paz, mi hermano Dom Diego Armando Maradona. Que sejamos um dia, uma só gente, o povo latino-americano, forte e soberano, que corre de cabeça erguida e muda tudo.

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Aletheia Vieira
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Written by Aletheia Vieira

Jornalista, professora de comunicação, gosta de política desde criança.